segunda-feira, 10 de junho de 2019

Partir.


Eu fui embora. Não digo hoje ou ontem, digo de um tempo atrás mesmo, pra ser mais sincera, cerca de 10 anos atrás. Eu fui embora pra ver o mundo, queria entender mais do que aquele vai e vem da vida cotidiana que sempre me abraçava, mas eu nunca entendia. Queria sentir falta das pessoas e, talvez até mais que isso, queria fazer falta pra elas também. Queria desbravar mares, montanhas, idiomas, eu tinha gosto por ser a amiga, neta, prima, afilhada, filha que foi morar lá fora. Então fui.

Mas 10 anos atrás eu pouco sabia o que poderia ser todo esse mundo, eu pouco sabia de mim mesma e 10 anos atrás eu mais falhei do que conquistei. Queria tanto ser lembrada por quem eu amava, que quando atravessei o oceano sozinha, fui eu quem não esqueceu. Fui então areia movediça e neguei tudo o que me encontrou naquele país colorido em formato de bota. Me neguei a conhecer novas faces minhas que estavam lá fora e tornei uma experiência difícil, porém inesquecível, em impossível. Então voltei.

Voltei e por algum tempo acreditei que estava tudo encaixado, que tinha vivido um tempo na Europa, que no grande oceano de pessoas da minha idade, eu era diferente. Eu não falava inglês, mas falava italiano. Eu tinha morado no velho continente, eu tinha ido mais além. Porém, depois de um tempo, a cidade voltou a ficar pequena, os dias se entristeceram, a vida de adulta que vinha chegando não encontrava espaço e daí comecei a querer um pouco mais do que aquilo. Quis ir embora, pra outra cidade. Maior, mais gente, mais cinza.

Dessa vez, mais segui do que tive a iniciativa. Não confiaram muito na minha decisão, acreditaram que logo estaria de volta. Mas não foi bem assim. A cidade era grande demais, barulhenta demais e cinza demais, mas por dois anos foi moradia. Meus dias foram mesclados entre longas viagens de metrô e trem e cervejas e cigarros divididos no sofá do meu pequeno apartamento de um quarto. Eu amava e odiava. Eu tinha amigos, mas também não tinha. Voltava pra minha cidade natal todo feriado, férias e cheia de saudade. Mas a vida era de certo modo, minha. Dividia os dias com o namorado, com a amiga, passeava, tomava sol na janela. Era bom, mas ruim. Não me encaixava totalmente. Teve então um coração quebrado, a surpresa foram maravilhosos cinco meses que se seguiram, cheios de novos amigos, risadas, música e vida. Mas a reviravolta chegou tarde e então era hora de voltar.

Voltei. Meio a contragosto, pois eu já brincava de senhora de mim mesma. Voltei sabendo que a cidade cinza não me pertencia, mas com receio que meu lar também não. Reconheci a necessidade de estar em casa e assim fiquei um ano ali. Já tinha voltado cheia de planos pra ir embora de novo e dessa vez, seria pra mais longe. Iria sozinha desbravar o mundo, aprender a tal da língua inglesa. Ir era mais certo que ficar. A minha cidade colorida, vezes ensolarada e vezes chuvosa, sempre cheia de amor, infelizmente era tão pequena para tudo o que eu queria ser, mesmo que ainda não fizesse ideia do que. Ali amei, criei e desmontei ninhos, sonhos e planos. Mas quando a hora chegou, eu só precisava ir. Ir pra longe, ir sozinha, mas tão em paz e tão certa do que estava fazendo que fui. Fui sem olhar pra trás.

A ilha esverdeada fazia frio, chuva e vento no dia que aqui pousei. Nevou no dia seguinte e geou por cerca de um mês. Nunca planejei muito, as coisas simplesmente aconteceram, porém tudo em seu devido tempo. Conquistei a passos de tartaruga uma vida que à certo modo, me satisfazia. Em meio a dias nublados, tive muita ajuda para chegar onde cheguei. Batalhei inúmeras vezes comigo mesma e com o mundo. Conquistar territórios nunca é tarefa fácil, seja na vida real ou dentro de si mesma.

Essas terras irlandesas me abrigaram, porém nunca foram meu lar. Aqui eu tive quase tudo o que eu planejava ter. Morava na Europa, viajava nos feriados, falava outro idioma. Criei rotinas, hábitos, lugares preferidos. Fiz amigos e conheci inúmeras pessoas. Me criei adulta, de fato. Longe, bem longe de casa, tive de aprender a ser eu por mim mesma e fazer dar certo, de alguma maneira. Paguei minhas contas, conquistei pequenos tesouros, fui dona do meu próprio nariz e lá de longe meus pais suspiravam, ora aliviados, ora orgulhosos. Assim como eu por aqui, que tive orgulho de tudo o que criei.

Foram então quatro invernos compridos demais, cinco verões amenos e curtos. Quatro invernos e cinco verões para me fazer entender que aqui, veja bem, também começou a ficar pequeno. Difícil foi encontrar coragem pra mudar, pra lidar com a ideia de era preciso. Coragem pra correr atrás de algo melhor, de terras onde o sol de fato doure a pele. Um lugar com longos verões e com novas versões minhas, desfilando por entre as ruas da cidade, esperando para serem encontradas.

Diria Belchior, meu coração é selvagem e eu tenho pressa em viver. Anseio novos portos. Não sei ficar onde não me agrada totalmente, onde falta algo – ou às vezes tudo. É necessário partir e partir de lugares é tão mais fácil do que partir de pessoas. 

Assim, comemoro com mais uma partida minha, o aniversário da primeira vez que resolvi ir embora. Dez anos atrás comecei essa aventura de percorrer terras e mares, para encontrar um lugar onde me satisfaça por inteira, onde veja raízes sendo criadas. Parto de novo, pois ainda estou à procura desse sentimento e não é estando parada no mesmo lugar que vou encontrar. É preciso desbravar, experimentar, ter coragem e querer. Querer muito. Vim até aqui com a vontade à flor da pele, sabendo que num mar de indecisões, o importante são as certezas, e de uma eu já sei há 10 anos: eu não volto mais.

Dublin, 10 de Junho de 2019. 15:14

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