quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Somos?



A sua imagem me sufoca e o som de Miles Davis parece acompanhar a tua ausência, pedindo que aquele vinho que nunca abrimos seja aberto – era pra alguma data especial. A calada da noite cai e lá fora chove, não se vê um palmo a frente, por isso não procuro você. Sei também que mesmo que eu procurasse você não viria, não ligaria também. Talvez enviasse uma carta, explicando das saudades. Explicando que um dia chegamos a ser todas as cores do mundo, mas que hoje somos folhas percorrendo um jardim em ventania, não sabendo se seremos ou não.

Doce solidão que a tua ausência me presenteou. No dia que você foi embora, aprendi a abrir uma cerveja – daquela que tanto gostávamos -, acender um cigarro e olhar pra fora da janela, ver o mundo todo acontecer, enquanto eu só me mantinha ali, parada. Depois que você foi embora, fiz do meu apartamento um maior abrigo. Era calmo, sereno, mas nunca silencioso. Tomava banho com o disco dos Novos Baianos, acendia um cigarro ainda de toalha ao tocar Tim Maia e, às vezes, com muito calor eu fechava as cortinas e percorria nua, dançando entre a fumaça e a mão que segurava o copo, o som daquela música que nunca tivemos a chance de dançar.

Eu fui pena, fui ancora, fui página esquecida. Fui tinta seca até aquele dia em que dobrei a esquina, te procurando e te encontrei. Finalmente, depois de tanto tempo, a esquina me deu o que tanto ansiava ver: teu sorriso. Acho que amorteci e enquanto você falava, me peguei pensando nas noites em que a minha cama foi grande demais para nós dois e que o tempo que tínhamos era sempre tão curto. Lembrei daquele dia que vi seu rosto sorrir pro meu na multidão do metrô, e aí pegou a minha mão. Ficou. 

Depois de tanto tempo, eu não senti mais a sua ausência, apenas o seu silêncio, como se estivesse me observando calado dali da cama, enquanto eu quase rasgo o papel com o lápis. Usando apenas o teu sorriso. 

Eu dancei com a minha solidão, você dançou com a sua? Entre passos arrastados e apertados, tropecei, rasguei a pele do joelho e eventualmente das mãos, mas curei sozinha. Foi necessário não te procurar quando chorei sangue e sangrei lágrimas. Foi necessário entender que a vida continuava bonita, talvez mais vazia e diferente, porém, tão bonita quanto.

Adormeci em seus braços aquela quinta-feira e teria adormecido de novo na sexta-feira e no sábado e agora. Quando confessei não querer voltar e você disse para eu ficar, quase perguntei se eu poderia ocupar o lado esquerdo da tua cama. Naquela manhã eu abri os olhos e vi você, notei que apoiava meu braço em seu ombro, igual como era antes, lembra? Encaixei em ti de novo, como há muito não encaixávamos. 

E agora, enquanto o disco do Miles Davis continua percorrendo minha madrugada, eu não consigo entender mais do que eu já entendi. Talvez você tenha sentido o mesmo esse tempo todo, talvez você tenha sentido saudade. Talvez ainda exista chama, onde nem o tempo, nem outras histórias e outras dores foram capazes de apagar. Pode ser que sejamos como algo em construção. Pode ter sido uma doce despedida. Pode ser que sejamos algo sem nome, livres para sentir saudade, livre para sermos, para ir e voltar. 

Pode ser que um dia tenhamos sido doces e que ainda sejamos e ainda seremos.


Curitiba, 28 de janeiro de 2015. 01:19